7.1.08

Fim de festa

Minha mulher ergue-se cedo para ir ao hospital. Seu pai tem o sistema imunológico débil, consequência duma terapia agressiva, e a cada pouco, especialmente nestes meses de inverno, afecta-lhe alguma gripe ou coisa semelhante. O andaço causa estragos nos serviços de emergências. Neste fim de ano, meu sogro esteve com febre; o pobre tremia como um vímio verde, deitava o abrigo de pele por acima dos ombros e resmungava maldições pelo frio que se lhe metia entre carne e ossos e que nem com essas conseguia conjurar.

Quando me ponho em pé, afasto um pouco a cortina branca e vejo pela janela do primeiro andar à velha dobrada sobre as nabiças. Pensei que essa, e não outra, era e é a imagem eterna de Galiza: nas chairas douradas e castanhas, nas viçosas abas dos montes, nas alvas praias das marinhas, nos socalcos amuralhados, nas nemorosas beiras dos rios e nas fecundas veigas: uma velha inclinada, o espinhaço curvado, a cabeça por baixo da cintura, os olhos a fitar a terra mãe com raiva, a boca a cuspi-la, a língua a injuriá-la; sim, à terra mãe que a todos nos há de acolher de jeito definitivo.

Nem as catedrais que os grandes seniores eclesiais fundaram sobre o suor e o sangue dos labregos, nem as vilas ou casas da burguesia foreira e caciquil, nem o folclore resgatado nas ocasiões para as festas cívicas nem esse castelhano tão simpático que falamos os “senhoritos” das vilas e das cidades têm a jurisdição simbólica dum homem ou uma mulher abaixado sobre o rego.

Visto-me e desço as escadas de madeira, saúdo aos "inseparáveis" que parecem muito espilidos, fecho a porta e saio para a estrada. Deixo trás de mim a camélia, olho e atravesso o asfalto. Ela vai caminhando apressada cara ao garagem, e leva na mão um feixe verde. Pergunto-lhe a que anda e responde-me que a apanhar nabiças para que as levemos a Lugo. Acho que, com o preço que estão a atingir os alimentos, esta ajuda poderia ser importante para as famílias que a tenham.

Um pouco mais tarde, já em Sada, pensei ir nadar, mas as maniotas que sentia nos braços, o lombo, as pernas e os quadris, sem dúvida produzidas pelo exercício do dia anterior, não foram razão suficiente para impedir-me desistir: é sabido que, de ter essa dó, o melhor é continuar a fazer exercício para que o ácido cristalizado desapareça logo. A mulher que vejo desde o recheio é a mesma que vi na horta, figura única na milagrosa paisagem lacustre. Está na água de pés nus. Podo-a ver reflectida na areia molhada – nao é a ria um grande espelho do cosmos, tal que o eram as ilhas do Jónico no tempo de Aquiles?–, os sapatos acima duma pilha de conchas que guarda um cão pequeno e rebuldeiro, as calças arregaçadas, a artrite metida nos miolos, apanha que te apanha berbirichos ou ameijas que mais tarde há de cozer para um arroz.

Depois de chegar caminhando até a depuradora, volto por dentro da cidade, pelas ruas que decorrem em paralelo ao passeio que foi construído sobre o próprio mar. Aqui a vila conserva algo do seu sabor e aspecto original, o ar que devia ter tal e como se pode ver nas teias de Llorens. Sada tem pois dois almas: uma é a tradicional, outra a moderna. Sada a conservadora e Sada a arriscada. Passo pelas branhas e torno ao mar por uma pequena ruela cheia de restaurantes. Já não está a mulher que colhia moluscos, talvez só foi uma miragem; sou consciente de que já não fica muito daquela Galiza trabalhadora, de mãos ásperas e frente enrugada pelo sol. Hoje, como diz na imprensa o secretário geral de um importante sindicato, o motor da economia não é apenas a construção, mas os serviços. “Fique certo que a situação não e tão preocupante como gostam de exagerar os conservadores” ou algo assim vem de dizer o Cándido Méndez. Com efeito, os campos e os mares já não absorvem o esforço da maior parte dos filhos da terra, nem mesmo as fábricas. Hoje, a maior parte de nós, galegos que noutro tempo íamos pelo mundo para ver de ganha-lo, participamos num festim insustentável de esbanjamento consumista que só nos podemos permitir os países abastados, achegando em troco poucas coisas de valor à riqueza do grande mundo.

O cosmos inteiro não é bastante para a fome do homem branco. Estamos apanhados.